A voz obstinada da memória e da literatura

Cláudio Machado
2 min readJan 20, 2024

Não acho que devemos lidar apenas com a lógica dos fatos. Prefiro uma verdade inventada, capaz de me pôr de pé.
(O aveso da pele, Jeferson Tenório)

Não é do meu propósito, ó voz obstinada,
mas da minha condição.

(Medida da Significação, Cecília Meireles)

Terminei a leitura de O Avesso da Pele há uma semana, mas segui ruminando o livro por dias. A narrativa é direta e vocal, me deixou em permanente estado de alerta durante a leitura, em nenhum momento a leitura foi um deleite. Me senti descalço, caminhando em um chão com cacos de vidro espalhados. Não há como ser brasileiro e ser imparcial ou indiferente ao racismo.

A narrativa é aparentemente simples. Henrique, um professor negro, em fim de carrareira na educação pública, é assassinado numa abordagem policial. Os fantasmas do policial o levaram a imaginar uma arma no que era um romance de Dostoiévski. Essa é uma das traduções mais fortes da clivagem política atual. Uma versão da imagem: um livro versus uma arma.

Sabia do enredo desde o início da leitura, mas pouco importou. Segui a leitura acreditando que não aconteceria, mas esse é o desfecho descritivo afinal.

Até lá, Pedro, seu filho, reconstitui sua história pessoal e familiar, um relato descritivo com forte conteúdo emocial. No entanto, o narrador dá pistas que também está inventando. Talvez seja aí que o autor é mais contundente.

Sim, O Avesso da Pele tem uma voz obstinada que exige o direito à memória e à literatura.

Pedro cria uma história que o deixa de pé. A descrição de situações em que os vínculos familiares precários são expostos é uma denúncia da exclusão à que essas famílias estão expostas. Mas, a narrativa vai além, sua história pode ser inventada, afinal muito da história pessoa que nos coloca de pé é assim. A recriação da memória é o que nos coloca de pé.

A paixão de Henrique pela literatura foi sua razão para viver e morrer. O narrador nos conduz passo à passo para o ápice. O momento alto do livro não é o assassinato de Henrique, mas a leitura de Crime e Castigo nas suas aulas e o seu extase por finalmente ver seus alunos tendo o direito de ler uma grande obra da literatura universal. Seu assassinato é o anti-clímax, a volta aos fatos incontornáveis da tragédia brasileira.

Brasília, 19/01/2024.

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